Ao desvendar o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, ocorrido em 2018, a Polícia Federal (PF) revelou também um esquema envolvendo autoridades da segurança pública do Rio de Janeiro que, em vez de atuarem para desvendar o caso, adotaram estratégias para evitar o avanço das investigações. No centro do esquema estava o delegado Rivaldo Barbosa, então chefe da Polícia Civil.
Se, na teoria, cabia a ele desvendar o caso, na realidade, segundo a Polícia federal, o delegado teria feito mais do que obstruir a investigação. As suspeitas são de que ajudou no planejamento do crime, algo que surpreendeu até a família de Marielle, de quem o delegado se aproximou e ganhou confiança logo no início das investigações.
No inquérito, tornado público pelo Supremo Tribunal Federal (STF), Rivaldo é acusado de obstruir os trabalhos policiais, de forma a proteger os autores de crimes cometidos por diversos contraventores, deste e de outros casos, em especial envolvendo milicianos e bicheiros. Entre os crimes imputados a ele está o de participar de organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção passiva.
A indicação de Rivaldo para o cargo na Polícia Civil foi feita pelo general de Exército Richard Nunes, mesmo diante de um parecer do setor de inteligência que informava sobre “atividades suspeitas” que associavam o delegado a contraventores locais, em especial bicheiros. A nomeação foi assinada pelo então interventor do governo federal no estado, general Walter Braga Netto.
Segundo a PF, a lista de acusados envolvidos com o assassinato da vereadora abrange Ronnie Lessa, autor dos disparos contra Marielle e Anderson; Élcio de Queiroz, que dirigiu o carro que perseguiu o de Marielle na ocasião do assassinato; o ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, o "Suel", a quem coube monitorar a rotina da vítima, além de ajudar a dar sumiço na arma utilizada no crime; e Edilson Barbosa dos Santos, mais conhecido como "Orelha", dono do ferro-velho onde foi feito o desmanche do carro usado no crime. Os investigadores apontam como mandantes do crime o deputado Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ) e seu irmão Domingos Brazão. Tanto os irmãos Brazão quanto Rivaldo Barbosa foram presos preventivamente no último domingo (24).
Um dia após o assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, Rivaldo Barbosa, já chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, nomeou o delegado Giniton Lages, com quem tinha comprovadamente relações próximas - inclusive relatadas pelo próprio Lages no livro "Quem Matou Marielle?", escrito por ele -, para presidir as investigações do caso.
O inquérito da PF apresenta depoimentos e diversas provas indiciárias do esquema criminoso envolvendo a Delegacia de Homicídios. Algumas apontam que Rivaldo seria "conivente com os homicídios envolvendo a participação de milicianos e contraventores, dos quais recebia vantagens indevidas", e que ele teria feito alertas a "alvos de investigação quando da menção de seus nomes em procedimentos criminais ou quando da existência de medidas restritivas em desfavor deles".
Segundo a investigação da PF, entre os crimes acobertados está o assassinato do presidente da Portela, Marcos Falcon, em setembro de 2016; de Haylton Carlos Gomes Escafura e de sua mulher, na Barra da Tijuca, em 2016, assim como o de Geraldo Antônio Pereira, no mesmo ano; José Luís de Barros Lopes, em 2011, e Marcelo Diotti da Matta, em 2018. Uma das frentes de investigação da PF que comprovaram a ligação entre investigadores e criminosos partiu do depoimento da filha de Marcos Falcon, Marcelle Guimarães Vieira Souza.
Falcon era, na época, candidato ao cargo de vereador do município do Rio de Janeiro, mas foi assassinado a menos de uma semana do pleito. Sua filha disse à PF que o delegado Brenno Carnevale, responsável pela investigação da morte de seu pai, havia manifestado "descontentamento com as ingerências praticadas por Rivaldo Barbosa na investigação". Entre as ingerências estaria o pedido de Rivaldo para que Carnevale não mexesse em "nada das novas descobertas”, e que as informações deveriam sempre passar antes diretamente por ele, Rivaldo.
Carnevale teria falado, também à filha de Marcos Falcon, sobre o “sumiço repentino” de procedimentos apuratórios atrelados a Falcon e Geraldo Pereira.
"Marcelle ressaltou que todos com quem conversava sobre a morte de seu pai, sobretudo policiais, desestimulavam-na a procurar a DH [Delegacia de Homicídios, quando chefiada por Rivaldo], pois essa delegacia estaria comprada e de nada adiantaria seu empenho", detalha o documento divulgado pela PF. Além disso, segundo ela, Rivaldo teria marcado um encontro com Falcon pouco tempo antes de ser morto, mas que o encontro acabou não se concretizando em razão de seu assassinato.
Brenno Carnevalle estava lotado, em 2018, na delegacia que era responsável pela apuração dos homicídios envolvendo agentes de segurança pública. Em depoimento ao Ministério Público do RJ, ele informou que não houve nenhuma elucidação de crimes envolvendo bicheiros entre agosto de 2016 e março de 2018; e que materiais apreendidos e inquéritos haviam desaparecido de forma misteriosa.
No depoimento, ele reiterou o que havia sido dito por Marcelle e acrescentou outros fatos que ampliaram ainda mais as suspeitas contra Rivaldo. Foi o caso do sumiço de inquéritos como o de André Serralho, em 2016, bem como de alguns materiais apreendidos durante as investigações. Citou também o excesso de exigências burocráticas que inviabilizavam diligências; e as "súbitas trocas de presidências de inquéritos", como o que envolvia a morte de Haylton Escafura, filho do contraventor conhecido como Piruinha.
Outro fato narrado por Marcelle mostra que a delegacia chefiada por Rivaldo era conivente com os homicídios envolvendo a participação de milicianos e contraventores, dos quais, segundo a PF, Rivaldo recebia vantagens indevidas. A PF acrescenta que o delegado civil alertava alvos de investigação, quando tinham seus nomes mencionados em procedimentos criminais ou quando ficava a par de medidas restritivas que seriam aplicadas em desfavor deles.
"Uma análise, ainda que superficial desses inquéritos, infelizmente, revela uma lamentável realidade: historicamente, os homicídios ligados a disputas da contravenção, invariavelmente, não resultam em efetivas respostas estatais; rumam em via única destinada a uma deplorável impunidade institucionalizada", diz o inquérito.
A sentença assinada pelo juiz da 1ª Vara Criminal Especializada em Organização Criminosa, Bruno Monteiro Rulière, destaca que o exame dos procedimentos adotados "permite inspirar particular questionamento sobre a adequação e regularidade na condução dos inquéritos policiais (inconclusivos), que são marcados por rotinas engessadas, despidas de profícuos atos apuratórios, com uma manifesta situação de letargia e omissão deliberada de alguns agentes e/ou autoridade públicas". "Com isso, todos inquéritos acabam sem conclusão", detalhou o juiz.
O inquérito mostra que o chefe da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa, estava preocupado com a possibilidade de federalização do caso. Nesse sentido, relata uma manifestação dele na mídia, após ser indagado sobre a possibilidade de eventuais colaborações da PF na investigação. Ele disse ter convicção de que a Polícia Civil tinha condições de elucidar o caso.
Segundo o inquérito, chamou a atenção o fato de, antes da entrevista concedida ao RJTV 12 horas após o assassinato de Marielle, a Delegacia de Homicídios da Capital ter vazado a informação de que as munições empregadas na emboscada contra a vereadora decorriam de um lote vendido para a PF em 2006.
Isso, segundo o inquérito, foi feito "com o claro objetivo de repelir a atuação da força de segurança federal no caso". No mesmo dia, 15 de março, o procurador-Geral de Justiça do RJ, José Eduardo Gussem, defendeu que, diante desses fatos, era importante "evitar que a investigação passe para a esfera federal". A declaração foi feita após visita da procuradora-Geral da República, à época, Raquel Dodge, ao estado, ocasião em que anunciou que iria instaurar uma apuração preliminar do caso no MPF.
Dodge havia nomeado cinco procuradores para acompanhar a investigação do caso. “Entretanto, Gussem, no dia 21 de março de 2018, ingressou com um pedido no Conselho Nacional do Ministério Público para que a apuração dos procuradores da República fosse suspensa, o que foi deferido liminarmente pelo conselho e ensejou a revogação da portaria de nomeação do grupo”, diz o inquérito, ao apresentar algumas manifestações públicas de Gussem em favor de Rivaldo Barbosa.
“Avançando na análise da relação de Rivaldo Barbosa com Gussem, entretanto chamou a atenção desta equipe de investigação que, na ocasião em que o primeiro foi denunciado pelo MPRJ pela suposta prática de crimes contra a lei de licitações, por firmar contratos emergenciais na área de informática no valor de R$ 191 milhões, o então procurador não adotou a postura de proteger sua instituição, bem como de seus membros, outrora realizada com afinco, mas, de forma surpreendente, atacou os promotores de Justiça signatários da exordial acusatória, e defendeu Rivaldo Barbosa”, complementa o inquérito da PF.
Entre os atos praticados para obstruir as investigações, reforçados com a nomeação de Lages, a PF aponta “exemplos inequívocos de que o aparato policial não somente se absteve de promover diligências frutíferas, mas também favoreceu para a sabotagem do trabalho apuratório". Um desses exemplos foi a negligência para se obter as imagens do veículo utilizado para o crime contra a vereadora, que acabou por não abranger, inicialmente, a rota de fuga dos executores.
O inquérito fala também de uma “duvidosa dinâmica” da delegacia de homicídios que teve como ponto de partida uma denúncia anônima, que tentou associar o crime ao então vereador Marcelo Siciliano, adversário político dos verdadeiros mandantes citados pela PF, os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão.
A investigação levantou também, falsamente, suspeitas contra Orlando Curicica, miliciano que atuaria na Zona Oeste do Rio de janeiro. Curicica havia delatado esquemas de pagamentos mensais por milicianos a delegacias do estado; e que pagamentos extras teriam sido feitos para evitar investigações específicas de alguns homicídios.
Em maio de 2018, uma equipe da delegacia de homicídios comandada por Lages esteve na Penitenciária de Bangu 1 com o intuito de obter uma confissão de Orlando Curicica, que apontasse a autoria do crime a Marcelo Siciliano. “Diante da negativa de Curicica, tal equipe teria o ameaçado de lhe atribuir outros homicídios como meio de coerção (ou coação) a confessar aquela hipótese pré-moldada”, descreve o inquérito da PF. “Imputar o delito ao então vereador Marcelo Siciliano teria o condão não só de garantir-lhes a impunidade, mas também fulminaria politicamente um dos concorrentes eleitorais da família Brazão nos bairros da Zona Oeste carioca”, complementa o documento.
O inquérito cita “vantagens indevidas” que Gussem teria recebido do ex-secretário de Saúde do estado, Sérgio Côrtes, para arquivar investigações que o tinham como alvo. Todo esse contexto levou os investigadores a constatar que Rivaldo Barbosa “conseguiu atingir seu segundo intento, de modo que os órgãos de persecução penal federais foram alijados das investigações”.
O inquérito descreve também algumas estratégias adotadas por Rivaldo para lavar o dinheiro recebido dos contraventores. Ele inclusive teria constituído, com sua esposa, Erika Araújo, uma empresa, com o propósito de justificar o aumento de patrimônio obtido no período em que dirigia a delegacia de homicídios e, posteriormente, quando foi chefe da Polícia Civil.
“Rivaldo e sua esposa Erika se lançaram às atividades empresariais justamente no período em que Rivaldo foi nomeado para chefiar a Delegacia de Homicídios da Capital, de modo a se protrair enquanto ele foi diretor da Divisão de Homicídios (21/5/2016) e chefe da Polícia Civil (8/3/2018). Recorda-se que é justamente quando está na DHC ou à frente da Polícia Civil que foram encontrados relatos, depoimentos e formalizadas denúncias envolvendo episódios de corrupção e outras atividades ilícita”, diz o inquérito.
Ouvido pela PF durante as investigações, o general Richard Nunes prestou depoimento aos delegados e negou ter ingerência na escolha de Rivaldo.
“A Subsecretaria de inteligência contraindicou o nome de Rivaldo, mas o depoente decidiu pelo seu nome, tendo em vista que tal contraindicação não se pautava por dados objetivos. Teve contato com Rivaldo na época da força de pacificação”, diz o depoimento.
A Agência Brasil entrou em contato com a defesa de Rivaldo Barbosa e aguarda retorno.
Em nota, a defesa de Braga Netto afirmou que "a seleção e indicações para nomeações eram feitas, exclusivamente, pelo então Secretário de Segurança Pública" e atribuiu sua assinatura na nomeação de Rivaldo Barbosa a "questões burocráticas".
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